domingo, 31 de maio de 2015

Abre a janela agora, deixa que o sol te veja

       


       Ainda me lembro perfeitamente da vista da janela do meu quarto de infância. Morávamos num lugar alto, no montanhoso sul de Minas, e meu quarto ficava no segundo andar. Dali eu via boa parte da cidade, com casas que subiam e desciam morro até o telhadão da rodoviária, que marcava o horizonte. A janela era também a arena do meu esporte preferido: jogar água (ou tinta, ou cascas de fruta) nos pobres pedestres que passavam embaixo. Agia sozinha, com o irmão ou com as amiguinhas, e ainda acho que a vida vai me fazer pagar (com pombos, provavelmente) algumas roupas alheias que manchei. Foi numa noite à beira dessa mesma janela, de frente para o Cruzeiro do Sul, que espremi os ouvidos para escutar, ao longe, a única apresentação dos Mamonas Assassinas em Varginha, em 1995. Ouvi muito pouco e disse a mim mesma que iria na próxima, quando fosse mais velha. A próxima nunca aconteceu.
              Daquela rodoviária do telhadão, parti pra Juiz de Fora. E mudei muito de janela até chegar ao apartamento onde fiquei a maior parte do tempo. A vista era de fundos, e por aquela janela entrava um sol de verão até a parede oposta, que me exilava na cozinha. No inverno fazia frio. Daquela janela, que era grande, gostava de me pendurar com meio corpo pra fora pra sentir umas gotinhas de chuva. Atrás do prédio tinha uma oficina mecânica, e foi ali que uma gata deu cria na mesma semana em que minha televisão quebrou. Demorei mais de um mês pra ligar pro técnico e, enquanto isso, acompanhava pela janela a vida dos quatro filhotes. Gatinhos aprendendo a andar, gatinhos se escondendo nos pneus, um big brother de gatinhos numa época de menos internet e menos coisa pra fazer. No dia em que eles sumiram, fui bater lá na oficina. Fui atendida por uma senhora muito grossa que falou que tinha dado todos pra uma amiga. Fiquei triste e mandei consertar a televisão.
             Se eu nunca tivesse ido trabalhar em navio, esse texto não existiria. Porque já diz aquela frase batida que o ser humano só dá valor quando perde. E janela em navio é pra quem pode: tripulantes com cargos altos e passageiros pagantes. A ralé trabalhadora divide cabines do tamanho de uma caixa de sapato, só com uma saída de ar. Flutuando pelo mundo na cidade de lata, saber se lá fora chove ou se faz sol perde totalmente a relevância. Até porque você dorme, acorda, trabalha, come, bebe e dorme de novo sem botar o nariz no mundo exterior. Nas felizes ocasiões em que se sai da toca pra conhecer uma cidade nova, entra em cena o canal que eu chamava de TV Janela: imagens da câmera de fora, informações de temperatura, chuva, vento e horário local.
            Talvez por isso eu tenha ficado tão deslumbrada por ter janela de novo aqui no Rio. O quarto onde passei a maior parte do meu tempo aqui tinha uma janela alta, maravilha da arquitetura de 80 anos atrás. Pra olhar pra fora, eu tinha que subir na cama. Sem problema, eu subia sempre. E logo em frente tinha (ainda tem) um flamboyant que se enche de flores vermelhas no verão e depois de uns frutos estranhos parecendo vagens gigantes. Às vezes, deitada na cama, dava pra ver a lua. Agora mudei de quarto e minha janela, além de dar pro apê vizinho, não abre totalmente. Se eu não vejo mais as estrelas, pelo menos não faço a alegria da garotada trocando de roupa. Tudo bem.
            Hoje eu quis escrever sobre janelas, simplesmente porque me deu na telha, em meio a um monte de obrigações. Porque janela é tudo que permite olhar pra fora e ver além. Tem dias em que dá vontade de fechar as cortinas e fazer silêncio. Mas o mundo tá lá fora, pedindo janelas abertas, mesmo que entre barulho, poeira e mosquito. Então hoje, de dia ou de noite, pare um pouquinho e vá até a janela. Pode ser que você só veja a parede do outro lado, o vizinho lavando louça ou um cachorro coçando a orelha. Mas talvez isso recorde outras janelas, de outros tempos, em outros lugares. Hoje eu desejo que você também perca 10 minutinhos de trabalho, e que janelas sejam abertas não só pelo ctrl+N do navegador.