segunda-feira, 30 de março de 2015

Foi por medo de avião


         Lá nos idos de 79, quando voar ainda era luxo pra poucos, Belchior usou seu medo de avião como desculpa pra pegar na mão da moça que dividia com ele o bracinho da poltrona. Se ele estivesse no cinema, talvez não se atrevesse. Mas, fechado num pássaro de lata que começava a ganhar altura, desafiando as leis da natureza, ele deixou o pudor de lado e mandou ver. Porque tudo é uma questão de perspectiva. Só de voar sem ter asas, o ser humano já está cometendo uma grande ousadia. Diante disso, uma sensualizada de leve não é nada.
         Semana passada fizemos uma viagem em família. Com destino a Natal, parti do Rio, enquanto o restante do grupo saiu de São Paulo. Mensagem da minha mãe: “Oi, Van, já estamos no aeroporto. Queria te passar umas informações.” Pensei que ela ia me mandar o número do voo e o horário de chegada, mas o que recebi foram dados bancários, para o caso de “alguma coisa acontecer”.
         É claro que “alguma coisa” (apelido da Dona de capuz preto e foice) pode acontecer em qualquer esquina. O sujeito pode ser atropelado, levar um raio na cabeça, ser sugado pela enxurrada como aconteceu com um rapaz essa semana. Pode ter uma infinidade de doenças. E com a violência das grandes cidades, é como diz a música: “cuidado com a Cuca, que a Cuca que te pega”. Mas mesmo com tudo isso, e com todas as estatísticas que o confirmam como um meio de transporte seguro, o que é que o avião tem pra dar frio na barriga da gente?
         O que o avião tem é o poder de deixar bem claro que, no fim das contas, a gente não tem o controle total das coisas. Trabalhei embarcada em navios por três anos. Já me perguntaram várias vezes se eu não tinha medo de viver flutuando no meio do oceano. Não, nunca tive. E nunca tive pela sensação, talvez até ilusória, de que um navio demora horas pra afundar e eu teria chance de fazer alguma coisa. Já num avião, se a rebimboca da parafuseta não funciona como deveria, todo mundo pode se espatifar no mar e não há colete nem assento de flutuação que dê jeito. Se o copiloto acorda numa bad e tem uma crise de ansiedade (quem nunca teve?), lá vão 150 pessoas pro beleléu sem escala e sem chance de protesto.
           Atire a primeira pedra quem não sente nem uma pontadinha no estômago na inércia da decolagem. Eu sinto e ainda faço parte do seleto grupo de pessoas mais propensas a ter medo de avião: as que têm outros medinhos bobos com os pés plantados na terra. As que ficam paradas de boca aberta que nem a Carminha congelada no final de Avenida Brasil até perder o timing, porque a frase não sai. As que passam meia hora digitando pra no fim apagar tudo e mandar só uma carinha. Ou não mandar nada. As que escrevem um pingo esperando que o outro entenda a letra, a frase, o texto, mesmo que todos os estudos apontem que isso não funciona.
        Já voei bastante, por lazer e por trabalho. E não tem uma vez que eu não tente subornar Deus pra tudo correr bem. Passo os minutos antes da decolagem elaborando um super plano de marketing na cabeça pra convencê-lo de que eu ainda posso contribuir muito pra esse mundo. Como se ele não soubesse que, além disso, eu quero é mais tempo pra ver se aprendo a agir diferente. Pra ver se me inspiro no Belchior e fico mais pra frente na vida, antes de atingir a categoria Gold no meu programa de milhas.

terça-feira, 10 de março de 2015

O Rio é um carioca


Não foi amor à primeira visita. Vim só pra conhecer, pra ver qual era. E ele era realmente tão lindo quanto diziam, tão cenográfico quanto as novelas mostravam. Mas naquele dia era ao vivo. Ele, Rio de Janeiro, e eu aos 20 anos, no topo do Corcovado pela primeira vez. Setembro de sol, braços abertos sobre mim e a Guanabara, e eu meio que sem querer piscar, pra não perder nenhum milissegundo daquela vista que atraía os olhares do mundo. Amor ainda não era, que amor vem com o tempo. Mas aposto que ali, na minha cara embriagada de céu e verde e mar, ele, o Rio, sabia que já tinha me ganhado. Porque o Rio, meus amigos, o Rio é um carioca.
Quase tudo já foi cantado, fotografado, escrito em verso e prosa sobre o Rio e suas mulheres. Boa parte disso pelas mãos, olhares e vozes dos homens cariocas, campeões nacionais daquela conversinha mole que a gente sabe bem qual é. E mesmo que hoje em dia exista mais “goshtosa” do que Chicos, Tons e Vinícius sussurrando em nossos ouvidinhos, no fundo um certo charme carioca ainda persiste. E não estou falando só dos moços sarados, lindos e cheios de graça que passam com seu doce balanço a caminho do mar. Na verdade, esse nem é bem o perfil dos cariocas que já tiraram meu sono, mesmo antes de morar aqui. O borogodó local, um não sei o quê perdido entre a malandragem e a poesia, transcende estilos e classes sociais.
Depois daquela primeira visita, vieram outras. Assim de passagem, sem compromisso, como beijos num bloco de carnaval. Descendo do navio no Píer Mauá, conhecendo um pouco por dia, aprendendo caminhos, trocando o andar de turista agarrada na bolsa por um certo ar de quem sabe aonde vai (mesmo quando não fazia ideia). E numa dessas visitas, andando pela avenida Rio Branco, me peguei pensando em como seria ficar. Porque é fácil querer ficar vendo o pôr do sol no Arpoador. Mas querer ficar depois de bater perna no Saara, com um calor digno do nome, é o mesmo que se pegar pensando num cara enquanto corta cebola e concluir: “fudeu, estou gostando dele”. E eu estava.
Ele, o Rio, esperou a hora certa de chegar. O encontro aconteceu, como tantos outros, através de uma amiga. Era o Rio convidando, proposta irrecusável, quem não iria querer? Eu disse “quero”. E vim de mala e cuia ao encontro dele, com os braços abertos como o Cristo que me acostumei a ver.
E foi assim que eu descobri que nem só de dias de sol, brisa de mar e barquinho a navegar é feita a vida no errejota. Um casal que passa a conviver se dá conta das manias, vê a tampa da privada levantada, a toalha molhada na cama. O dia a dia aqui me mostrou um trânsito bruto, preços altíssimos, o atendimento muitas vezes ruim. E ainda instalou no meu sistema um certo radar de assalto com visão periférica que liga assim que a gente sai de casa.
Existem mil cidades mais seguras, como existem “bons partidos” no amor, prontos para oferecer uma vida mais estável e linear. Mas é na intensidade que o coração bate, é no calor que o corpo vibra, e é por isso que a gente fica, de novo e ainda, mesmo dizendo que é a última vez ou “só mais um pouquinho”. Porque o Rio encantado é na verdade um carioca real: humano, pulsante, vivo e incerto, com o bem e o mal dentro de si. Como somos todos, afinal.
Desde o dia em que trouxe as malas, já se passaram quase três anos. Em alguns momentos faltou dinheiro, em outros sobrou suor. Mas nunca, nunca mesmo, faltou emoção. Cada vez que eu me encho e penso em ir embora, ele me presenteia com uma paisagem incrível, uma roda de samba, uma trilha, um novo bar. Passo um calor infernal, mas chego na praia em 20 minutos (e isso para uma mineira tem muito valor). A mão continua pousada na bolsa, porque é prudente mesmo deixá-la ali, mas agora com mais leveza. Posso até querer uma vida mais pacata algum dia, mas por enquanto sigo, por escolha, neste relacionamento meio “mulher de malandro” com o Rio. Porque podia não ser amor naquela primeira visita, naquele rolinho despretensioso, naqueles encontros casuais. Mas, nos últimos tempos, às vezes me pego pensando em um dia firmar compromisso com ele, eterno enquanto dure, de papel passado e escritura na mão.