Lá nos idos de 79, quando voar ainda
era luxo pra poucos, Belchior usou seu medo de avião como desculpa pra pegar na
mão da moça que dividia com ele o bracinho da poltrona. Se ele estivesse no
cinema, talvez não se atrevesse. Mas, fechado num pássaro de lata que
começava a ganhar altura, desafiando as leis da natureza, ele deixou o pudor de
lado e mandou ver. Porque tudo é uma questão de perspectiva. Só de voar sem ter
asas, o ser humano já está cometendo uma grande ousadia. Diante disso, uma
sensualizada de leve não é nada.
Semana passada fizemos uma viagem em
família. Com destino a Natal, parti do Rio, enquanto o restante do grupo saiu
de São Paulo. Mensagem da minha mãe: “Oi, Van, já estamos no aeroporto. Queria
te passar umas informações.” Pensei que ela ia me mandar o número do voo e o
horário de chegada, mas o que recebi foram dados bancários, para o caso de
“alguma coisa acontecer”.
É claro que “alguma coisa” (apelido
da Dona de capuz preto e foice) pode acontecer em qualquer esquina. O sujeito
pode ser atropelado, levar um raio na cabeça, ser sugado pela enxurrada como
aconteceu com um rapaz essa semana. Pode ter uma infinidade de doenças. E com a
violência das grandes cidades, é como diz a música: “cuidado com a Cuca, que a
Cuca que te pega”. Mas mesmo com tudo isso, e com todas as estatísticas que o
confirmam como um meio de transporte seguro, o que é que o avião tem pra dar
frio na barriga da gente?
O que o avião tem é o poder de
deixar bem claro que, no fim das contas, a gente não tem o controle total das
coisas. Trabalhei embarcada em navios por três anos. Já me perguntaram várias
vezes se eu não tinha medo de viver flutuando no meio do oceano. Não, nunca
tive. E nunca tive pela sensação, talvez até ilusória, de que um navio demora
horas pra afundar e eu teria chance de fazer alguma coisa. Já num avião, se a
rebimboca da parafuseta não funciona como deveria, todo mundo pode se espatifar
no mar e não há colete nem assento de flutuação que dê jeito. Se o copiloto
acorda numa bad e tem uma crise de ansiedade (quem nunca teve?), lá vão 150
pessoas pro beleléu sem escala e sem chance de protesto.
Atire a primeira pedra quem não sente nem uma pontadinha no estômago na inércia da decolagem. Eu sinto e ainda faço parte do
seleto grupo de pessoas mais propensas a ter medo de avião: as que têm outros medinhos
bobos com os pés plantados na terra. As que ficam paradas de boca aberta que
nem a Carminha congelada no final de Avenida Brasil até perder o timing,
porque a frase não sai. As que passam meia hora digitando pra no fim apagar
tudo e mandar só uma carinha. Ou não mandar nada. As que escrevem um pingo
esperando que o outro entenda a letra, a frase, o texto, mesmo que todos os
estudos apontem que isso não funciona.
Já voei bastante, por lazer e por
trabalho. E não tem uma vez que eu não tente subornar Deus pra tudo correr bem.
Passo os minutos antes da decolagem elaborando um super plano de marketing na
cabeça pra convencê-lo de que eu ainda posso contribuir muito pra esse mundo. Como
se ele não soubesse que, além disso, eu quero é mais tempo pra ver se aprendo a
agir diferente. Pra ver se me inspiro no Belchior e fico mais pra frente na
vida, antes de atingir a categoria Gold no meu programa de milhas.