Ainda me lembro perfeitamente da vista da janela do meu
quarto de infância. Morávamos num lugar alto, no montanhoso sul de Minas, e meu
quarto ficava no segundo andar. Dali eu via boa parte da cidade, com casas que
subiam e desciam morro até o telhadão da rodoviária, que marcava o horizonte. A
janela era também a arena do meu esporte preferido: jogar água (ou tinta, ou
cascas de fruta) nos pobres pedestres que passavam embaixo. Agia sozinha, com o
irmão ou com as amiguinhas, e ainda acho que a vida vai me fazer pagar (com
pombos, provavelmente) algumas roupas alheias que manchei. Foi numa noite à
beira dessa mesma janela, de frente para o Cruzeiro do Sul, que espremi os
ouvidos para escutar, ao longe, a única apresentação dos Mamonas Assassinas em
Varginha, em 1995. Ouvi muito pouco e disse a mim mesma que iria na próxima,
quando fosse mais velha. A próxima nunca aconteceu.
Daquela
rodoviária do telhadão, parti pra Juiz de Fora. E mudei muito de janela até
chegar ao apartamento onde fiquei a maior parte do tempo. A vista era de
fundos, e por aquela janela entrava um sol de verão até a parede oposta, que me
exilava na cozinha. No inverno fazia frio. Daquela janela, que era grande,
gostava de me pendurar com meio corpo pra fora pra sentir umas gotinhas de
chuva. Atrás do prédio tinha uma oficina mecânica, e foi ali que uma gata deu
cria na mesma semana em que minha televisão quebrou. Demorei mais de um mês pra
ligar pro técnico e, enquanto isso, acompanhava pela janela a vida dos quatro filhotes.
Gatinhos aprendendo a andar, gatinhos se escondendo nos pneus, um big brother
de gatinhos numa época de menos internet e menos coisa pra fazer. No dia em que
eles sumiram, fui bater lá na oficina. Fui atendida por uma senhora muito
grossa que falou que tinha dado todos pra uma amiga. Fiquei triste e mandei
consertar a televisão.
Se eu nunca tivesse ido trabalhar em navio, esse texto
não existiria. Porque já diz aquela frase batida que o ser humano só dá valor
quando perde. E janela em navio é pra quem pode: tripulantes com cargos altos e
passageiros pagantes. A ralé trabalhadora divide cabines do tamanho de uma
caixa de sapato, só com uma saída de ar. Flutuando pelo mundo na cidade de
lata, saber se lá fora chove ou se faz sol perde totalmente a relevância. Até
porque você dorme, acorda, trabalha, come, bebe e dorme de novo sem botar o
nariz no mundo exterior. Nas felizes ocasiões em que se sai da toca pra conhecer
uma cidade nova, entra em cena o canal que eu chamava de TV Janela: imagens da
câmera de fora, informações de temperatura, chuva, vento e horário local.
Talvez por
isso eu tenha ficado tão deslumbrada por ter janela de novo aqui no Rio. O
quarto onde passei a maior parte do meu tempo aqui tinha uma janela alta,
maravilha da arquitetura de 80 anos atrás. Pra olhar pra fora, eu tinha que
subir na cama. Sem problema, eu subia sempre. E logo em frente tinha (ainda
tem) um flamboyant que se enche de flores vermelhas no verão e depois de uns
frutos estranhos parecendo vagens gigantes. Às vezes, deitada na cama, dava pra
ver a lua. Agora mudei de quarto e minha janela, além de dar pro apê vizinho,
não abre totalmente. Se eu não vejo mais as estrelas, pelo menos não faço a
alegria da garotada trocando de roupa. Tudo bem.
Hoje eu
quis escrever sobre janelas, simplesmente porque me deu na telha, em meio a um
monte de obrigações. Porque janela é tudo que permite olhar pra fora e ver
além. Tem dias em que dá vontade de fechar as cortinas e fazer silêncio. Mas o
mundo tá lá fora, pedindo janelas abertas, mesmo que entre barulho, poeira e
mosquito. Então hoje, de dia ou de noite, pare um pouquinho e vá até a janela. Pode
ser que você só veja a parede do outro lado, o vizinho lavando louça ou um
cachorro coçando a orelha. Mas talvez isso recorde outras janelas, de outros
tempos, em outros lugares. Hoje eu desejo que você também perca 10 minutinhos
de trabalho, e que janelas sejam abertas não só pelo ctrl+N do navegador.
2 comentários:
Ah, a vista da sala nem é das piores, Vai!
Linda história das janelas da sua vida. Sempre gostei de ter paisagens e ver longe através das minhas janelas , e descansar os olhos no horizonte...tive sorte de ver a raia da Usp , o perfil da av Paulista , rio Pinheiros , rio Tietê , e canaviais...tudo através da minha janela. Parabéns pelo texto lindo !
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